MÉDICOS DE MÚLTIPLA ESCOLHA

Você procura o pronto socorro por causa de uma dor no peito, com medo de estar sofrendo um ataque cardíaco. Você se sente ignorado, mal-atendido, não consegue confiar no médico que te atendeu. Situação familiar? Talvez isso tenha acontecido por que ele deve ter procurado pelo seu corpo, nos seus exames, no seu eletro ou mesmo tentado ouvir do seu coração cinco opções do que poderia estar acontecendo com você. É assim que os programas de residência médica avaliam os médicos brasileiros hoje. É assim que grande parte dos estudantes de medicina se prepara para atender pacientes nas melhores escolas do país.

As provas de residência são hoje o maior entrave da educação médica brasileira. Já não é novidade na escola de medicina que temos que adequar o modelo educacional ? realidade, preparar o médico para tomar parte na sociedade do conhecimento, na revolução médica, com todos os avanços científicos que se operam hoje no mundo. Mas apesar disso os “Professores” continuam exigindo os rodapés dos livros, as exceções raríssimas, doenças que eles viram, se viram, uma vez na vida. Exatamente como acontecia há trinta anos atrás quando o Brasil estava asfixiado numa ditadura militar onde quem questionasse o modelo ia preso acusado de subversão. Por algum motivo, esse modelo da provinha de múltipla escolha, da aulinha paroquial, do terrorismo preciosista inútil, insiste em “mediocrizar” quem encara uma faculdade de medicina no Brasil.

É fácil encontrar um monte de gente dentro e fora das escolas de medicina que entendem que o sistema está “torto”, que não está adequado. Mas mudar?!?! Mudar não, aí já é demais, somos brasileiros, se aborrecer por que? Nunca tomamos parte em nada na nossa história mesmo, a gente não pode mudar nada. Mesmo os alunos, esmagados pelo sistema, entram cavalos de raça, vencedores do vestibular, e saem pangarés oprimidos pelo modelo estúpido das provinhas de múltipla escolha da residência. Correm apavorados para “cursinhos pré-residência” decorar as opções do que você vai estar sentindo quando procurar alguma ajuda médica. Parece mentira, mas não é. Chegamos mesmo a esse ponto.

Enquanto isso no mundo desenvolvido, os médicos, estudantes e professores de medicina estão pesquisando, desenvolvendo tecnologia, publicando nas melhores revistas e liderando pra onde, nós os pobres liderados, vamos chegar com uns 20 anos de atraso. Investir em pesquisa? Nem pensar, no Brasil médico vê doente, pesquisador, coitado, vê camundongo se teve rara sorte de ganhar o financiamento do seu projeto. É fácil encontrar quem pense que existe essa separação entre o médico e o pesquisador, quem insiste em não enxergar que a medicina só avança graças ? ciência, ? biologia molecular, a imunologia, ? terapia gênica, ? célula-tronco! Oops! Um monte de médico vai se confundir quando ler essas palavras.

A miserável medicina brasileira com as nossas orgulhosas exceções, mal trata ataque do coração, insuficiência cardíaca, diabetes e aqui se delirando com célula tronco. Só que a boa prática médica se faz com alguns fatores, um dos mais importantes é conhecimento técnico atualizado, advindo das últimas pesquisas que, no melhor dos mundos, você mesmo participou da produção. Logo, estar envolvido em produção científica, ou pelo menos conhecê-la intimamente, é compromisso do médico. Sem isso não há massa crítica e independência intelectual, estamos entregues aos dados potencialmente manipulados da indústria farmacêutica, aos dados externos. O processo científico é intrínseco ? medicina, discriminá-lo como tanto se faz no Brasil é um erro estratégico.

Pior, hoje suprimimos o espaço da reflexão, da crítica para decorar as fotocópias do caderno do “CDF” da turma, a apostila do cursinho, pra continuar sendo um país por via de regra periférico da medicina mundial. É de assustar eu sei, mas temos que acordar desse pesadelo acadêmico, refletir, criticar, exigir melhorias, mudar a nós mesmos. Vivemos a era do conhecimento difundido, a ignorância dos pacientes em relação ? ignorância dos médicos não vai continuar salvando a medicina, como dizia o Molière. Podemos nos preparar.

Vitor Pordeus é interno de medicina da UFF.


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