A medicina é arte, a arte é medicina

Artividades XXI
Cultura Ciência Saúde
Rio de Janeiro Abril 2010

A arte é medicina, a medicina é arte.

“Nossas atividades criativas deveriam ser instintivas, habituais. O artista de hoje é isolado, alienado de seus irmãos e da natureza. O esforço que ele faz é um esforço consciente, uma afirmação da sua ‘individuação’*, geralmente um protesto raivoso contra a sua impotência. Ele possui grande poder de cura, mas ninguém o procura em busca de ajuda. Ele não pode agir sozinho, mesmo por sua própria salvação. Seu trabalho é comunal. Outros artistas tem que estar com ele, trabalhando no mesmo projeto. Certamente, todos os homens tem que estar com ele, cada artista de acordo com sua característica, todos os homens artistas participando no trabalho que tem que ser feito, todo trabalho feito como arte.
Esta pode ser uma doutrina gentil para ser oferecida no meio das brutalidades tirânicas de nosso tempo, mas nós estamos considerando a contribuição que as artes podem fazer a causa da paz, e sua contribuição não pode, segundo a natureza das coisas, ser imediata. Mas um começo pode ser realizado, especialmente entre as mentes ainda não endurecidas pelos extremos da discórdia. Ninguém sabe de quanta graça nós somos dotados; mas enquanto um grão de esperança se mantém, ação é possível; em busca da unidade, em busca de entendimento mútuo, em busca da reforma da educação, em busca do lento processo de aprender a trabalhar juntos criativamente, não importa o quanto isso pode custar ao orgulho ou à auto-afirmação.”

*’self’, um termo Jungiano, cuja idéia remete ao indivíduo e seu processo de formação, traduzido em português como o processo de ‘individuação'(ver Jung: Vida e Obra de Nise da Silveira)

Herbert Read,
The Arts and Peace, pág. 191, in To Hell with Culture, 1963.
Routledge Classics 2002 Edition.
Traduzido para o português por V. Pordeus

Em tempos sombrios e confusos como o que vivemos, quando de modo absolutamente irracional distribuímos comida no planeta, no país e na cidade fazendo com que uns se empanturrem e outros morram de fome; quando os homens são diariamente consumidos pelas máquinas; quando é morta a criatividade dos homens e mulheres, todos absorvidos, hipnotizados, por um aparato tecnocrático pseudo-científico que vai de cargos burocráticos a celebridades imbecilizadas, no mundo da banalidade, da futilidade, beleza sem honestidade:

Estética sem Ética 2010.

Bem vindo ao mundo
da banalidade,
da futilidade
da bestialidade,
da beleza
sem honestidade.

Nos será muito útil entender o que se passa com a medicina dessa sociedade moderna, já que a medicina é a grande arte e ciência da natureza humana, e assim como o teatro, pode ser vista como um microcosmo do mundo humano.
Vejamos. A formação médica se inicia com um exame vestibular, o maior terror dos adolescentes das classes favorecidas que sonham com a carreira médica pois os pobres nem poderiam pensar em seguir uma carreira dessas pois justamente no exame vestibular há um verdadeiro filtro social, na medicina somente as classes mais abastadas da sociedade são admitidas, é o curso mais elitizado nas universidades nacionais e internacionais.
Assim, o adolescente com mais ou menos dificuldades consegue entrar para a universidade e cursar seu sonho, geralmente da infância, de ser médico. Chega na universidade pensando na vida, na ajuda ao próximo, na arte de curar, absolutamente fascinante a todos, a capacidade de cura, de regeneração, de superação das dificuldades humanas, no quanto é poderosa a arte da medicina.
Primeira surpresa desagradável: cadáveres para todos os lados. O primeiro impacto que um estudante de medicina geralmente enfrente é o estudo da anatomia humana, que é feito de forma mecanicista, fria, sem contexto prático claro, e geralmente se torna um objeto de opressão de professores universitários perversos sobre estudantes de medicina adolescentes que não conseguem elaborar suas reivindicações de forma eficiente e episodicamente recebem apoio efetivo de outros professores ou de órgãos de gestão democrática da própria universidade. Cabe ressaltar o modelo extensivamente autoritário do nosso sistema educacional geral, aplicado em todo o globo, com raras exceções, e também nas escolas médicas. O modelo didático-prescritivo, educação bancária, digestória, aula paroquial é uma amarga realidade em nossa sociedade. Mutilando a criatividade dos cidadão, tolhendo a expressão humana, transformando os indivíduos humanos em gado repetidor de funções irracionais visando o benefício lucrativo de uma minoria de podres de ricos, apenas 400 bilionários ou algo que o valha. Convencendo as pessoas que não é possível criar e recriar o mundo a nossa volta, de que a realidade é algo impossível de ser mudado, restringindo o repertório de emoções a um grupo de estereótipos produzidos em laboratório às custas de truques científicos e tecnológicos inimagináveis no mundo natural.
Nesse ambiente, e de cara com um cadáver, o jovem estudante de medicina progride em sua formação que neste momento está no que se chama de ciclo básico, ou seja , o momento da formação em que o estudante deverá ser devidamente preenchido, através de deglutição intelectual passiva dos conteúdos de anatomia, biologia celular, fisiologia, e etc. considerados importantes por aqueles professores que construíram o curriculum.
Depois disso o aluno passa a estudar o mundo microscópico das células, tecidos, sincícios, epitélios colunares ou pavimentados, entre outros. Também aqui estuda-se bactérias e vírus que são ensinados serem a pior ameaça para a saúde humana, e alienígena também, segundo H.G. Wells.
E após dois anos vivendo os horrores dos laboratórios de anatomia, as paisagens celulares vertiginosas dos microscópios, e tomar conhecimento dos maiores perigos para a espécie humana, finalmente vamos para o Hospital Universitário, que é, dentro do sistema de saúde estruturado, o último lugar que o cidadão deve procurar. Uma vez que no HU estão os professores-pesquisadores super-especialistas em doenças que não foram diagnosticadas e/ou tratadas na medicina de família do posto de saúde, nem nas Clínicas e Policlínicas com especialistas como cardiologistas, e nefrologistas, nem nos Hospitais Gerais que realizam procedimentos como exames complicados e cirurgias. E o estudante de medicina que a essa altura já é um adulto jovem começa então a estudar a abordagem aos pacientes internados no Hospital Universitário.
Essa é a razão de em nosso país a massa de milhares médicos anualmente formados seguirem o caminho da especialização pois foram formados em centros hospitalares altamente especializados, com poucas oportunidades de conhecer outras formas de lidar com a saúde que não sejam especializadas, e saem médicos de dedão do pé, de cirurgia de ponta de nariz, de distúrbio elétrico do lado direito do coração, e etc. Prontos a assumir a sua posição-engrenagem na grande máquina do sistema de saúde mecânico-farmacêutico-tecnocrático-pseudocientífico internacional. Sustentado por uma ciência artificial tecnológica e equivocada que reduz os fenômenos biológicos a puras reações forjadas em laboratório para demonstrar teorias caducas, verdadeiros cadáveres maquiados sustentados em pé graças a manipulação ideológica de dados científicos, manchetes de jornal, publicidade e marketing; e a atividade artística deverá ser incluída na categoria publicidade e marketing, pois nessa sociedade industrial, elitista e consumista, os artistas foram reduzidos a meros garotos propaganda de alguma marca comercial nacional ou internacional, vendem descaradamente sua criatividade, afeto, discurso em troca de mordomias e privilégios materiais. Com muito poucos indivíduos conseguindo de fato uma atuação transformadora e criativa das possibilidades humanas num verdadeiro atentado à saúde pública.
Uma provável evidência do que digo:
Foi publicado na Revista Européia de Saúde Pública (European Journal of Public Health) em 2009 um estudo relacionando o número de horas de televisão assistidas com medo de uma pandemia de gripe. Em 23 países da União Européia estudados foi encontrada uma relação de aumento de 15% no número de pessoas com medo da pandemia a cada hora adicional de exposição à TV.(#REF)
Obviamente os cientistas encontram exatamente na mesma posição, alienados de sua criatividade, buscam desesperados a próxima fórmula mágica que trará bilhões em lucro para a indústria farmacêutica e algum conforto material para eles próprios, foram dominados também no íntimo de seus afetos e desejos, e perderam suas conexões com a natureza, esqueceram da obrigação ética de explicar, explicar o mundo a nossa volta e não simplesmente inventar armas e drogas cada vez mais poderosas a serviço da exploração e destruição da própria natureza que ele devia entender e defender.
Quer dizer, estamos em franca crise ideológica, científica, artística, médica, social. E são nesses momentos de crise é que devemos vasculhar nos interiores mais profundos da natureza quais são os valores e idéias que nos fazem humanos, que nos encontram com nossos afetos, que regeneram nosso corpo e nossa mente, apontando para uma existência possível, nesse curtíssimo espaço de tempo em que permaneceremos vivos, que mesmo que não resolva a questão, aponte para uma solução possível. Nessa busca por nossa dimensão profunda que nos reconheçamos parte da natureza, grandes primatas bípedes conversadeiros, com prazer em cooperar, em fazer coros, música, dança, poesia, teatro, que criam e recriam a realidade, um mero acordo continuamente construído na linguagem, criaturas com uma profunda capacidade criativa, cujas idéias são estados do corpo, expressão simultânea da matéria e dos sonhos. Criaturas dotadas da arte de curar, capazes de regenerar feridas nos afetos e nos tecidos da alma, no exercício de sua expressão, no diálogo com o outro e com o mundo, na “emoção do lidar” de Nise da Silveira que rejeitou a medicina da modernidade conservadora para recuperar a medicina da arte de curar, da história, da vida. Reencontrando tradições ancestrais humanas como a medicina de Hipócrates, a arte de Shakespeare, os rituais de fertilização e regeneração do deus Dionísio, a cura do deus Apolo, que nunca deveriam ter se separado.
Fundamentalmente precisamos da coragem para romper, pois não há criatividade sem ruptura. E essa decisão é íntima e pessoal, apenas cada um e todos poderemos mudar essa realidade insuportável de artificial e falsa, no diálogo, na construção coletiva, na reafirmação dos valores da vida, da democracia, da humanidade. Diferentes, mas profundamente iguais. Exaustos de tentar ser modernos, decidimos ficar eternos. Termino invocando o maior poeta desse país, Carlos Drummond de Andrade:

Eterno

E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.

Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.

(Le silence éternel de ces espaces infinis m’affraie.)

O que é eterno, Yayá Lindinha?
Ingrato! É o amor que te tenho.

Eternalidadede eternite eternaltivamente
eternuávamos
eterníssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno.

Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem o nome
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica
e nenhuma
[força o
resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos;
e
[passageiras
as obras.
Eterno, mas até quando? É esse marulho em
nós de um
[mar
profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
[afundamos
É tentação a vertigem; e também a pirueta
dos ébrios.
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do
que
[essência
ou nem isso.
E que eu desapareça mas fique este chão
varrido onde
[pousou uma
sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie
como uma
[esponja no
caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.

#
Television exposure is related to fear of avian 
flu, an Ecological Study across 23 member 
states of the European Union 
Jan Van den Bulck, Kathleen Custers 
Background: A pandemic outbreak of H5N1 avian influenza is believed to coincide with large-scale 
panic. Even without an outbreak fear of infection may be widespread. Mass media coverage of the 
risks of a pandemic may lead to higher levels of fear. Methods: An ecological study looked at data 
from 23 member states of the European Union and controlled for population size, level of education, 
age distribution and income and wealth. Results: When the findings for Cyprus were excluded each 
additional hour of average TV viewing was associated with a 15.6% increase in the proportion of people 
worrying about the virus. TV viewing explained 52% of the variance. Conclusion: Fear of a pandemic 
precedes any real pandemic and may have to be dealt with separately. Exposure to television is highly 
associated with worrying about the virus. This relationship merits further study. 
European Journal of Public Health, 1–5 
ß The Author 2009. Published by Oxford University Press on behalf of the European Public Health Association. All rights reserved. 
doi:10.1093/eurpub/ckp061 
 
The European Journal of Public Health Advance Access published May 28, 2009


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